Repórter – O doutor poderia resumir em poucas palavras o conteúdo básico da revolução religiosa que está acontecendo na Europa desde 1517?
Lutero –
Preciso apenas de uma ou duas linhas para resumir tudo: “sola scriptura”, “sola
gratia” e “sola fide”. Essas expressões latinas são os nossos três “somentes”:
só as Escrituras, só a graça e só a fé.
Repórter – Foi o doutor quem
inventou esses três “somentes”?
Lutero – Eu
não inventei. Eles já existiam. Mas estavam lamentavelmente cobertos de poeira
grossa e teias de aranha, arremessados à sujeira e pisoteados. Pela graça de
Deus, redescobrimos o valor das Escrituras, o valor da graça e o valor da fé,
tiramos a poeira, lustramos essas riquezas e as trouxemos à luz do dia. Agora
que está tudo limpo e brilhando de novo, cada um pode ver como é o evangelho de
Jesus.
Repórter – O que o doutor
quer dizer com o “sola scriptura”?
Lutero –
Quero dizer que somente a Escritura — e não a Escritura somada à tradição da
Igreja — são a fonte de revelação cristã. A Bíblia deve ser a primeira e a
última palavra para qualquer declaração de fé.
Repórter – Então o doutor se
coloca em oposição à rica tradição da Igreja.
Lutero – Não
é bem assim. Eu coloco a Escritura acima da tradição, e não o contrário.
Repórter – Nunca em pé de
igualdade?
Lutero –
Também não. Pois a Escritura não pode ser equiparada à tradição. São Paulo diz
que “toda Escritura é inspirada por Deus” (2 Tm 3.16). Não se pode dizer o
mesmo com respeito à tradição.
Repórter – Em que lugar o
doutor coloca os pronunciamentos papais?
Lutero –
Sempre abaixo da autoridade da Bíblia. Esta deve governar como Palavra de Deus
na Igreja e não pode ser embaraçada pelo magistério papal nem rivalizada por
supostas revelações adicionais.1
Repórter – Mas há coisas que
a Escritura não explica.
Lutero – Na
“Exposição de Romanos”, de João Calvino, o reformador francês radicado em
Genebra, 26 anos mais novo do que eu, afirma acertadamente que não devemos
“procurar saber nada mais senão o que a Escritura nos ensina”. Ele diz também
que “onde o Senhor fecha seus próprios lábios, devemos impedir que nossa mente
avance sequer um passo a mais”.
Repórter – Já que o doutor
mencionou o nome de Calvino, pergunto se vocês estão de acordo quanto ao “sola
scriptura”.
Lutero –
Apesar de nossas divergências de ênfase e de estilo, eu, Calvino e Ulrico
Zwínglio, o reformador suíço, nascido um ano depois de mim, estamos de pleno
acordo quanto à centralidade da Palavra de Deus e quanto à certeza de que a
Escritura é a fonte para se pensar em Deus.2
Repórter – A Escritura está
ao alcance do povo?
Lutero – De
1457, dezessete anos depois da invenção da impressão com tipos móveis, a 1517,
ano das “Noventa e Cinco Teses”, foram publicadas mais de 400 edições da
Bíblia. Não estou incluindo nessa estatística o Novo Testamento de Erasmo e a
Bíblia em alemão por mim traduzida.
Repórter – O preço de cada
exemplar da Escritura deve ser proibitivo.
Lutero – No
passado, as Bíblias em latim custavam 360 florins. As mais elaboradas, chegavam
a custar 500 tálares. Mas o Novo Testamento que traduzi logo após a Dieta de
Worms, é vendido a um florim e meio!
Repórter – Qual a relação
entre o “sola scriptura” e o “sola gratia”?
Lutero – O
primeiro “somente” nos leva ao segundo “somente”. Isto é, na leitura da
Escritura redescobrimos que a vida eterna é o dom gratuito de Deus, como São
Paulo ensina na Epístola aos Romanos (6.23). A Escritura, e nada mais, é o
instrumento pelo qual o Espírito nos conduz à graça. A Igreja há muito tempo
deixou o “sola gratia” no esquecimento e começou a tornar a salvação mais
difícil, distante, incerta, meritória e burocrática.
Repórter – Mais lucrativa
também?
Lutero – Não
posso negar esse fato, frente ao problema do comércio das indulgências, quando
o perdão de pecados e a remissão da culpa são vendidos de cidade em cidade
muito mais em benefício do Estado papal do que das almas.
Repórter – O que o doutor
quer dizer com o “sola gratia”?
Lutero –
Entendo e prego que o pecador é justificado somente pelo amor, pela
misericórdia e pela graça de Deus, e nada mais. O “sola gratia” tanto me abaixa
até o pó como me ergue até às estrelas. Primeiro me humilha, depois me honra;
humilha-me quando me informa e me convence de que não tenho nada para oferecer
em troca da salvação; honra-me quando me informa e me convence de que em Cristo
fui salvo (isto é justificação), estou sendo salvo (isto é santificação) e
serei salvo (isto é glorificação). A graça de Deus me livra da culpa, do poder
e da presença do pecado.
Repórter – Mas isso é
formidável!
Lutero –
De fato. Todavia, como reza o “sola scriptura”, “olho nenhum viu, ouvido nenhum
ouviu, mente nenhuma imaginou o que Deus preparou para aqueles que o amam” (1
Co 2.9). Deus ainda tem muito mais para nos oferecer e mostrar.
Notas:
1. STANLEY, J. Grenz et al. “Dicionário de teologia”; mais de 300 conceitos
teológicos definidos de forma clara e concisa. São Paulo: Vida, 2000. p. 125.
2. EDITORA MACKENZIE. “O pensamento de João Calvino”. São Paulo: Mackenzie,
2000. p.16.
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